Segunda-feira, 22 de Março de 2004
Titularização das dívidas ao fisco e à segurança social
Dúvidas Sobre Uma Operação Misteriosa
Segunda-feira, 22 de Março de 2004

O que se conhece da operação que permitiu ao Governo reduzir o défice de 2003 sem sobrecarregar a dívida pública não garante, ao contrário do que afirma a ministra das Finanças, que o risco da operação esteja todo do lado dos investidores.

Análise por João Ramos de Almeida
Houve um pressuposto na homologação pelo Eurostat da operação Citigroup que permitiu ao Governo cumprir as metas orçamentais de 2003. Essa condição foi a de que a operação não pode representar algum risco futuro para as contas públicas. Ou, usando as palavras da ministra Manuela Ferreira Leite, que o risco da operação ficará todo do lado de quem comprar os títulos vendidos pelo Citigroup. Ora, tal como é conhecida a operação, não há garantias disso.

Esses sinais surgiram, primeiro, da própria ministra das Finanças que não conseguiu esclarecer todos os elementos dos contratos assinados por si e enviados ao Parlamento dois meses depois de firmados a 19 de Dezembro de 2003. Depois, porque não se conhece os pormenores da venda nos mercados internacionais, o que é determinante para conhecer os encargos dessa operação. O PÚBLICO enviou ao Ministério das Finanças, na passada quinta-feira, uma lista de questões, para a qual não obteve resposta até ao fecho da edição. Ficam as dúvidas.

Milagre ou simples empréstimo?
O Estado cedeu 11,44 mil milhões de euros de dívidas fiscais e à Segurança Social, contra a entrega, de uma só vez, em Dezembro passado, de 1,765 mil milhões de euros. Esse montante reduziu o défice orçamental de 2003 de quase cinco por cento do produto interno bruto (PIB) para os 2,8 por cento, sem sobrecarregar a dívida pública. Aparentemente, um milagre.

Oficialmente, esse milagre é justificado porque se trataria de uma "antecipação" de receita fiscal. Mas a oposição alega que a operação é um "empréstimo" e como tal, nunca poderia ter sido aceite pelo Eurostat.

"Comprados" por uma sociedade do Citigroup ("Sagres"), os créditos vão ser "titularizados" por outra sociedade do Citigroup e vendidos nos mercados internacionais. Os títulos serão normais obrigações que os investidores adquirem sob a promessa de, num determinado prazo, ter uma remuneração. Essa remuneração varia consoante o risco do título, o qual foi determinado pela avaliação de risco pelas agências de "rating" contratadas por exigência do Citigroup (cujos relatórios não foram ainda disponibilizados).

Aquilo que é afirmado é que à medida que as dívidas fiscais sejam cobradas, essas obrigações vão sendo reembolsadas. Ou seja, aquilo que recebeu de uma vez e gastou em 2003, vai ter de ser pago ao longo dos anos. Com juros?

O negócio compensa?
A primeira dúvida é saber se o "negócio" compensa para o Estado. Em princípio, o encargo deveria ser mais barato do que emitir dívida e assumir o custo político do agravamento do défice orçamental. Mas o Governo nem apresentou essas contas alternativas.

Em vez disso, alega várias vantagens. Primeiro, o Estado vai cobrar ao Citigroup pela cobrança fiscal. Depois, porque poderá mesmo ficar com parte da cobrança, caso ultrapasse os montantes a pagar ao Citigroup ("preço diferido"). E aqui é que as coisas começam a não se perceber.

O artigo 4º da portaria 1375-A/2003 de 18 de Dezembro - que regulamenta o decreto 303/2003, aprovado a 5 de Dezembro, já depois de definido o acordo com o Citigroup - estabelece que há direito a "um eventual preço diferido, cujo montante é determinado após o pagamento integral das quantias devidas aos titulares das obrigações, deduzidas as despesas e os custos da operação".

Ou seja, é claro que o Estado, através da cobrança fiscal, vai ter de pagar o valor nominal das obrigações e a sua taxa de juro. No Parlamento, quando Manuela Ferreira Leite foi questionada sobre isso, afirmou não perceber o que se lhe estava a perguntar. Declarou que tinha de pagar os 1,765 mil milhões e tudo o que viesse a mais era do Estado. Ora, aparentemente também não é bem assim.

Taxa de juro de 6,7 por cento?
De acordo com o Instituto para o Desenvolvimento e Estudos Económicos, Financeiros e Empresariais (IDEFE) do Instituto Superior de Economia e Gestão - entidade contratada pela imposição do Eurostat de haver uma avaliação independente da carteira de dívidas - o montante a pagar será superior.

Houve uma certa confusão entre o valor entregue ao Estado pelo Citigroup (1,765 mil milhões) e o valor a pagar pelo Estado até 2013. Em princípio, os dois deverão ser iguais, entrando em linha de conta com o factor tempo. No cenário médio estimado pelo IDEFE (entre 1,75 e 2,065 mil milhões), o cálculo da cobrança fiscal a verificar entre 2003 e 2013, para pagar as dívidas entregues ao Citigroup, deverá ser de 2,364 mil milhões de euros. E esse valor, segundo o IDEFE, tem um valor aos "preços actuais" de 1,951 mil milhões.

Ora, essa "actualização" pressupõe uma taxa de actualização. E os cálculos do IDEFE têm subjacente uma taxa de actualização de 6,7 por cento. Mas se se considerar os 1,765 mil milhões recebidos pelo Estado e os mesmos montantes de cobrança, então a taxa sobe para mais de dez por cento. Porquê estas taxas e não outras? O IDEFE tem um capítulo a explicar qual a taxa escolhida e que se prende com os mercados.

Ora, na generalidade das operações de titularização, as taxas de remuneração dos títulos são inferiores à do crédito cedido. Dessa forma, os pagamentos feitos pelo devedor inicial pagam todas as taxas fixadas em cascata. O que aqui parece estar pressuposto é que o Estado terá de pagar com a entrega de receitas fiscais, num montante suficientemente elevado, para pagar a remuneração das obrigações.

Dito desta forma, a operação parece antes um "empréstimo", em que as cobranças fiscais coercivas futuras pagam o juro das obrigações. E não deveriam esses encargos ser contabilizados? E depois disso, haverá, na verdade, possibilidade real de o Estado arrecadar um "preço diferido"?

Riscos para o Estado foram subavaliados?
O Goveno alega que a operação representa uma pressão sobre a máquina fiscal. Mas ao mesmo tempo a ministra afirmou: "Se não quiser, não pago", como prova de que o risco teria ficado todo do lado dos investidores. Só que, por lei, o risco ficou desequilibrado porque o Estado aceitou a possibilidade de substituição de dívidas. E pior: subavaliou essa possibilidade.

Como reza a portaria, essa substituição ocorre " por efeito da verificação posterior da inexistência ou inexigibilidade ou diferença de valor desses créditos". O IDEFE considerou, com base nos elementos fornecidos pela administração fiscal, que existe uma taxa de substituição histórica de 19 por cento e de 3,8 por cento na Segurança Social. E, com base nessas percentagens desvalorizou a carteira (aumentando a necessidade de receitas fiscais para a pagar). Ora, nas estatísticas fiscais de 1999 a 2002, a percentagem de processos anulados foi de 30 por cento, não contando com a declaração em falha e prescrições (tudo somado seria de 42 por cento). Aliás, os próprios dados trabalhados pelo IDEFE demonstram que se verificou uma anulação na carteira agora titularizada entre 28 a 31 por cento, entre dívidas fiscais e da Segurança Social. Ou seja, a verificar-se as taxas históricas, é de esperar que sejam precisas mais receitas fiscais para pagar a mesma carteira. E não será isso uma repartição de riscos por parte do Estado?

Em segundo lugar, a portaria determina que só podem ser substituídos por "créditos de igual natureza" gerados "até 31 de Dezembro de 2003 ainda que o respectivo processo de cobrança coerciva seja iniciado em data posterior". Como as dívidas incluídas na carteira são as geradas até Setembro de 2003, o Governo aceitou um período curto de três meses.

Ou seja, o que acontecerá caso não haja dívidas para substituição? O estudo do IDEFE admite como hipótese a possibilidade de recompra dos créditos por parte do Estado. "Os métodos contratualmente definidos como aceitáveis para providenciar esse remedeio [face a uma detecção de créditos inexistentes ou irrecuperáveis] impõe ao vendedor uma das seguintes alternativas: saldar o crédito, substitui-lo por um bem do mesmo tipo, recomprá-lo ou comprá-lo ao detector dos títulos", refere o documento do IDEFE (página 21). Mas no caso de recompra, seria paga com que recursos? Não consiste esta possibilidade num risco para o lado do Estado?

As dúvidas que se levantam necessitariam ser quantificadas. Só assim os contribuintes poderiam julgar se o Governo não estará a esconder encargos futuros para aprovar orçamentos no presente. E se a ministra Manuela Ferreira Leite não estará a contradizer-se com tudo o que disse quanto era deputada da oposição

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Rf3085: Assim mais uma vez se tapa o sol com uma peneira.


publicado por sac3107 às 22:05
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